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domingo, 20 de julho de 2014

[A MÃO DO ESCRITOR] Um conto e uma poesia #02

Como de praxe, todo domingo teremos um post exclusivo para textos de nossos leitores.
Devido às ocorrências dessa semana e aos fatos vivenciados pelo universo da literatura, com o falecimento de dois de nossos maiores autores, o conto de hoje será em homenagem ao escritor, jornalista, roteirista e professor, João Ubaldo Ribeiro. Que sua pós-vida seja repleta de paz.


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CONTO

crônica escrita por João Ubaldo, no jornal O Globo, 13 de Setembro de 1998

O VERBO FOR

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu de dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário - evidentemente o condizente com a nossa condição provecta -, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez, domingo, dia do exercício).
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: latim, francês, inglês e sociologia, sendo que esta não constava nos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessavam diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano, Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
- Traduza aí quosque tandem, Catilina, patientia nostra - dizia ele ao entanguido vestibulando.
- "Catilina, quantas paciências tens?" - retrucava o infeliz.
Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
- Ai, minha barriga! - exclamava ele. - Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas nas mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei um show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
- Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
- As margens plácidas - respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
- Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
- Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
- Chega! - berrou ele. - Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moços pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravatas e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
- Esse "for" ai, que verbo é esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do circulo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
- Verbo for.
- Verbo o quê?
- Verbo for.
- Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
- Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. - Nós fomos, vós fondes, eles fões.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

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POESIA

poesia escrita escrita por Matheus Pires, 19 anos, Presidente do Clube do Livro de Ipatinga, Ipatinga/MG.

PAIOL


Roda esse paiol,
Só vejo a palha queimando,
E nem gosto eu sinto,
Que palha mais sem cor.

É um bege apagado,
Trago a dor,
Dolorosamente o final do paiol.





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