Hoje, traremos um conto do conceituado jornalista e escritor brasileiro Marques Rebelo, que sofreu uma homenagem póstuma na terça-feira, dia 26, em detrimento de seu falecimento. Já a poesia será de um dos meus poetas favoritos e escritor de uma das obras mais críticas e polêmicas da história (As Flores do Mal), o francês Charles Baudelaire, homenageado também postumamente, tendo seu falecimento dia 31 de Agosto de 1867, ou seja, sendo lembrado justamente hoje.
Conheça um pouco mais de seus escritos abaixo ;)
CONTO
crônica escrita por Marques Rebelo e publicada em Contos Reunidos, 1997
UMA SENHORA
Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca vergonha que a polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita polícia. Falta duma boa revolução!... Ah! Se ela fosse homem... Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar empregadas, fazia de criada - cozinhava, varria, cosia, encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico.
- Econômico?
Então se encera mesmo.
O marido, que já
estava acostumado àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o volume de Os
Miseráveis, meteu sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na
gola e foi telefonar para a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera - da
boa, vê lá! - chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está
ouvindo, seu Fernandes?
Estava sempre
para tudo, que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à mãe, que também
o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água
fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel reformado, que lhe virou por
cima do corpo.
Nunca se
queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas
pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para ela se abalar até o
cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingo em que
ia à missa, não fazia visitas, nem recebia.
Não reclamava o
trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola
pública, Élcio, Élcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos,
o que atesta bem a força do marido e dá ideia o que seria depois de dez
anos de casada, se depois de Elcina não tomasse as devidas precauções.
- Não se
esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora da saida,
enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda.Dona
Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense,
um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus
filhos, Margarida; filhos de tua amiga Quinota.
E os exames
estavam perto, comprêmios de cadernetas da Caixa Econômica dados pelo prefeito,
ridicularizados pelos jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo -
a Folha dizia que era um gesto de mecenas mas enfim
fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da meninada estudiosa.
Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três cadernetas para
casa. Os filhos é que não faziam fé.
Bordava para
fora,cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava
tempo ainda para ter ciumes do marido com as vizinhas, principalmente Dona
Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique, confessava.
Chegando o
carnaval, tirava a forra.
As
economias acumuladas saiam do Banco Popular juntas com os juros. Não
ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do seu
automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam
de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano
de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tintol gasta
aquele dinheirão em anúncios.Tirava do cabide a casaca do casamento, dezesseis
anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:
- No automóvel,
ninguém repara, meu filho- dizia com um sorriso,ora para a casaca, ora para o
marido, que se traduzia: lembras-te?
Ele, então, com
uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das
orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em
profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata.
No terceiro dia,
graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido:
Quanto temos
ainda?
Ele remexia a
carteira (bolso da casaca é o tipo de coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava
passado na língua, e cantava a quantia:
- Duzentos e
oitenta.
- E os
oitocentos do automóvel?
- Já estão fora.
- Ah! Bem... -
Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e
cinqüenta.
O resto ficava
para agastar depois do carnaval - mas entrava na verba dele - com o fígado do
marido, porque depois da pândega ( a experiência de Dona Quinota é que falava)
Seu Juca tinha rebordosas. vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta
canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.
Não faz mal. Não
fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias - falava. Mas pensava: por ano.
Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro. O " lá dentro"
de Dona Quinota era uma coisa complicada, complicadíssima, que ninguém
compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.
Desciam do
automóvel à porta da casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da
filharada.
- Assim, assim...
Dona Quinota
dizia aquele "assim-assim" de propósito.que lhe importava os outros
saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar
deliciando-se por dentro coma inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah!
Ah! Ah!
Seu Adalberto
exultava:
É isso mesmo.
Fez-se despesas enormes ( e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona
Quinota olhava para o céu).É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo.
Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube
Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeotamente as sociedades, tomamos
refrescos, brincamos à grande. Não foi?
As mocinhas
fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros:
Aquele carro do
girassol que rodava, hem, papai!
Seu Adalberto
corrigiu logo:
-Girassol, não,
Artur; crisântemo.
Depois que
corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo ou crisantemo - quer
ver que eu disse besteira?
Seu Juca não
havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos da casaca!...
-O ano que vem -
Dona Quinota falou firme - nós iremos também a pé.
O marido até se
virou. Ficou olhando espantado.Que diabo é isso? - ia perguntando. Por um triz
não perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
Foi quando Seu
Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e sentenciou como experiente na
matéria, apesar de nunca ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor
mesmo.
A tribo sumiu
pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro. Torreco torreco.Agora foi a chave
- duas voltas. O pigarro do Seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a
fuzilar-lhe na cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro,
pandeiro e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no
fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a
lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o
marido que dava por falta dum brinco: Que cretinos!
Seu Juca parou
no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e
esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde
ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto
do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.
Dona Quinota
atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas
ao meio dia.
Quando o resto
da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e Dona
Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil
que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando
todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...
POESIA
A UMA PASSANTE
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daqui! Tarde demais! Nunca, talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
Conheça mais os trabalhos desses grandes escritores! Deixe também seu comentário ;)
Até o próximo domingo!
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